Cada ser humano é uma orquestra finamente ajustada de mais de 37 trilhões de células. Mapear esse mundo pouco conhecido é um dos maiores desafios da biologia — e os cientistas afirmam ter feito um avanço significativo nessa direção.
Mais de 3.600 pesquisadores de mais de 100 países analisaram mais de 100 milhões de células de mais de 10.000 pessoas, de acordo com a última atualização de um ambicioso projeto lançado em 2016 para produzir um atlas de cada tipo de célula no corpo humano.
As novas pesquisas baseadas nas descobertas, publicadas em diversos artigos na quarta-feira (20) na Nature e suas revistas irmãs, representam um “salto na compreensão do corpo humano”, segundo o consórcio Atlas de Células Humanas.
O empreendimento é similar em escala e escopo ao Projeto Genoma Humano, que levou duas décadas para ser concluído.
“As células são a unidade básica da vida, e quando algo dá errado, começa com nossas células primeiro”, afirma Aviv Regev, cofundadora do Atlas de Células Humanas e vice-presidente executiva de pesquisa e desenvolvimento inicial da Genentech, uma empresa de biotecnologia baseada em South San Francisco, Califórnia.
“O desafio que tínhamos era que não conhecíamos as células bem o suficiente para entender como variantes e mutações em nossos genes realmente afetam as doenças. Uma vez que temos esse mapa, podemos encontrar melhor as causas das doenças”, ela disse em uma coletiva de imprensa na terça-feira (19).
Atualização para um “mapa do século XV”
Regev comparou o conhecimento científico da biologia celular antes da iniciativa do Atlas de Células Humanas com um “mapa do século XV”.
“Agora, anos depois, a resolução do mapa é muito maior”, afirma. “É mais como o Google Maps, onde você tem uma visão de alta resolução da topografia real, e em cima disso, você tem a visão da rua que realmente explica o que está acontecendo lá. Além disso, você pode até ver os padrões de movimento, como as mudanças dinâmicas que acontecem durante o dia”, acrescenta.
Um desafio é que diferentes tipos de células podem parecer morfologicamente indistinguíveis sob um microscópio, mas podem variar dramaticamente no nível molecular. Além disso, as células mudam conforme os humanos envelhecem e em relação ao ambiente externo.
Os avanços na tecnologia de sequenciamento de células individuais permitem aos cientistas entender como os genes em uma célula individual são ligados e desligados analisando o RNA, que lê o DNA contido em cada célula. Esta tecnologia, combinada com métodos poderosos de computação e inteligência artificial, permite aos pesquisadores criar uma carteira de identidade para cada tipo de célula.
Antes, pensava-se que havia apenas cerca de 200 tipos diferentes de células. Os cientistas agora sabem que existem milhares. O consórcio está construindo mapas de 18 redes biológicas, sendo o cérebro a mais complexa, e o primeiro rascunho completo do Atlas de Células Humanas será publicado em 2026, segundo Regev. O atlas de células visa preencher um elo perdido entre genes, doenças e terapias de tratamento.
“Esta é uma jornada incrivelmente emocionante, em termos de nossa jornada pelo corpo humano e descoberta de novos insights fundamentais sobre nossas células”, afirma Sarah Teichmann, copresidente fundadora do Human Cell Atlas e professora do Cambridge Stem Cell Institute da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Marcos podem desbloquear novos tratamentos
Os marcos tornados públicos na quarta-feira (20) incluem o mapeamento de todas as células do intestino; a produção de um projeto de como os esqueletos humanos se formam no útero; a compreensão da estrutura básica do timo, um órgão que desempenha um papel fundamental no funcionamento do sistema imunológico; o mapeamento da arquitetura molecular da placenta; e a construção de um atlas das células vasculares humanas.
O atlas do trato gastrointestinal, que inclui os tecidos da boca até o esôfago, estômago, intestinos e cólon, foi criado com dados de 1,6 milhão de células e revelou um tipo de célula que pode desempenhar um papel em condições crônicas como a doença inflamatória intestinal. O mapa inicial do esqueleto encontrou certos genes ativados nas células ósseas iniciais que podem estar ligados a um risco aumentado de desenvolver artrite no quadril na idade adulta.
“Ter uma imagem mais clara do que está acontecendo conforme nosso esqueleto se forma, e como isso impacta condições como a osteoartrite, pode ajudar a desbloquear novos tratamentos no futuro”, disse Ken To, pesquisador do Instituto Wellcome Sanger na Inglaterra e coautor dessa pesquisa, em um comunicado.
O cientista inglês Robert Hooke descobriu as células em 1665, observando cortiça sob um microscópio. Ele introduziu a palavra célula porque os padrões formados pelas paredes de celulose da cortiça morta o lembravam dos blocos de células usados por monges. No entanto, foi apenas 200 anos depois que os cientistas finalmente entenderam que as células eram a unidade fundamental do corpo humano.
Diferentemente do rascunho original do genoma humano, que foi predominantemente baseado em um único indivíduo, o atlas celular visa ser globalmente representativo e envolve pesquisadores e amostras de tecido humano de todo o mundo.
O projeto já levou a algumas descobertas significativas, incluindo a descoberta de um tipo de célula previamente desconhecido no trato respiratório chamado ionócito.
O estudo deste raro tipo de célula pode levar a novas formas de tratar a fibrose cística, uma condição genética causada por um gene que afeta o movimento de sal e água dentro e fora das células.
Durante a pandemia de Covid-19, a comunidade do Atlas de Células Humanas usou os dados disponíveis para revelar que o nariz, os olhos e a boca eram os mais vulneráveis à infecção.
“Só ficou claro através dos dados do Atlas de Células Humanas que essas células eram pontos de entrada antes que o vírus continuasse para os órgãos internos. Isso realmente ilustra de forma bastante simples o quão importante é um mapa de referência saudável do corpo humano e uma compreensão molecular profunda de nós mesmos”, disse Teichmann.
Jeremy Farrar, cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde, que não esteve envolvido na pesquisa, concordou que as descobertas emergentes do atlas estão “já remodelando nossa compreensão da saúde e da doença”.
“Esta coleção histórica de artigos da comunidade internacional do Atlas de Células Humanas ressalta o tremendo progresso em direção ao mapeamento de cada tipo de célula humana e como elas mudam conforme crescemos e envelhecemos”, disse Farrar em um comunicado.
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Fonte: www.cnnbrasil.com.br