No tabuleiro desse perigoso jogo geopolítico estão Oslo, os aliados da Otan, o governo Trump e até uma figura central da equipe que Putin enviou à Arábia Saudita para negociar o futuro da Ucrânia.
Quase mil quilômetros separam Tromsø, a cidade mais ao norte da costa norueguesa, e Svalbard, um arquipélago do Ártico que constitui uma das zonas geográficas mais remotas da Otan – e o mais recente foco de conflito entre a Rússia de Vladimir Putin e um dos aliados.
Com uma população residente de cerca de três mil pessoas, o arquipélago é um ponto de importância estratégica redobrada para os russos. É por isso, dizem especialistas, que neste mês Moscou apostou suas fichas em acusações à Noruega de estar violando o tratado que rege o arquipélago, no que pode ser, dizem, o prenúncio de um ataque-teste à Europa.
“Svalbard é indiscutivelmente remoto e frio, mas o arquipélago está estrategicamente posicionado, e a Rússia pode muito bem decidir usá-lo como um caso de teste – o que significa que é hora de começarmos a ficar de olho em Svalbard”, escreve Elisabeth Braw, da Iniciativa de Segurança Transatlântica do Atlantic Council.
Dê uma olhada em particular na queixa que o Kremlin apresentou em meados de março contra o que diz ser a militarização de Svalbard pela Noruega, algo que o país se comprometeu a nunca fazer quando a soberania do arquipélago lhe foi atribuída há 105 anos.
Em reunião com Robert Kvile, o embaixador norueguês em Moscou, altos funcionários diplomáticos da Rússia reclamaram que, “contrariamente ao regime jurídico internacional estabelecido pelo Tratado de Svalbard de 1920 – que prevê o desenvolvimento exclusivamente pacífico do arquipélago e proíbe o uso do território para fins militares – a área está cada vez mais envolvida em planejamento militar e político da Noruega com a participação dos EUA e da Otan”.
A informação foi noticiada pela agência russa TASS, que no texto citou o Ministério das Relações Exteriores russo alegando que “instalações de dupla finalidade estão operando no arquipélago, permitindo, junto com tarefas civis, tarefas militares, incluindo operações de combate no território de países terceiros”.
Esses, rebate Braw, não são os fatos. “Não há uso militar norueguês do arquipélago – e especialmente nenhum uso desse tipo pela Otan ou pelos EUA”, enfatizou a analista no início da semana.
“O Tratado de Svalbard proíbe bases navais e fortificações militares, e não há tais instalações em nenhuma das ilhas – embora navios de guerra noruegueses patrulhem as águas ao redor do arquipélago. […] Em vez disso, quem está causando perturbações é a Rússia”, acrescentou.
Desembarques, bandeiras, desfiles
A história de quem controla o arquipélago, também conhecido como Spitsbergen, remonta ao final do século XIX, quando ali foram descobertas reservas de carvão, aumentando a atratividade do conjunto de ilhas habitadas por humanos desde que foram achadas por baleeiros em 1600.
E descobertas as reservas, um grupo de 14 nações decidiu, em 1920, atribuir a soberania de Svalbard à Noruega, por ser o país mais próximo do arquipélago (ainda que 930 quilômetros distantes).
Sob o Tratado de Svalbard, o país aceitou como contrapartida permitir que cidadãos e empresas de outros Estados signatários vivessem, trabalhassem e operassem a partir dali – junto com o compromisso de nunca militarizar o arquipélago.
Foram 14 signatários originais, outros países se somariam ao tratado mais tarde. A Rússia o ratificou em 1935 para organizar o que Braw define como “uma presença soviética centrada nas minas de carvão” que ele passou a administrar lá.
Até 1998, quase uma década após o colapso da URSS, Svalbard abrigou uma vila que funcionava como uma “mini-União Soviética”. Naquele ano, a empresa russa Arktikugol fechou todas as suas minas em Svalbard e sua cidade modelo, Pyramiden – que, abandonada às pressas, é até hoje um assentamento fantasma que atrai muitos curiosos para visitá-lo.

“Contudo, a Rússia nunca deixou Svalbard completamente”, destaca a especialista do Atlantic Council. Em vez disso, os últimos anos viram manifestações questionáveis de autoridades russas e outros representantes do Estado russo no arquipélago que abriga o “cofre do apocalipse”.
Um dos casos mais notórios aconteceu há uma década, quando Dmitry Rogozin, vice-primeiro-ministro russo sancionado pelo Ocidente, desembarcou em Svalbard sem autorização da Noruega, de onde fez uma série de publicações nas redes sociais zombando dos noruegueses.
Em 2023, cerca de um ano após a invasão em grande escala da Ucrânia, os russos organizaram uma parada militar do Dia da Vitória no arquipélago, conforme relatado pelo Barents Observer.
Uma busca pelas palavras-chave “Svalbard” e “russos” no site do jornal norueguês, atualmente, mostra a dimensão das interferências da Rússia em anos recentes – como quando, há menos de um ano, o diretor da Arktikugol e outros hastearam bandeiras soviéticas em Pyramiden.
Para Elisabeth Braw, “mais preocupante” do que o aparente “ressentimento da Rússia diante dos dias gloriosos” de sua mini-URSS em Svalbard é o fato de que o Kremlin “parece ver o arquipélago como um lugar para testar novas maneiras de se afirmar e minar o Ocidente – um oficial russo sancionado chegando a Svalbard sem permissão, o chefe de Arktikugol plantando uma bandeira soviética e um desfile do Dia da Vitória (apesar de os nazistas nunca terem ocupado Svalbard) são todas provocações pouco sutis sobre as quais o governo norueguês pouco pode fazer. E agora o Kremlin aumentou as apostas.”
A linguagem que agrada a Trump
Em 20 de março, a Jamestown Foundation, think tank conservador especializado em questões de defesa com sede em Washington DC, dedicou um longo artigo de análise à situação de Svalbard onde referia que: “nos últimos dez dias, Moscou aumentou dramaticamente as tensões com o Ocidente por meio de conflitos nos oceanos Atlântico Norte e Ártico”, mas que “o Kremlin está oferecendo ao presidente dos EUA, Donald Trump, ‘uma saída’ por meio de um ‘acordo’ mais abrangente”.
Usando “uma tática russa clássica de desorientação”, logo após a reunião com o embaixador norueguês em Moscou, o empresário russo Kirill Dmitriev – figura central nas atuais negociações sobre a Ucrânia em andamento na Arábia Saudita – recorreu à rede social X para insistir que agora não é o momento para uma nova “guerra fria” no Ártico, mas sim para um “acordo” abrangente entre Moscou e Washington.
“Justamente o tipo de linguagem que provavelmente agradará a Trump”, destaca a Jamestown Foundation.

O fato do Kremlin ter convocado o embaixador norueguês para apresentar sua queixa formal sobre o uso indevido de Svalbard para fins militares, diz a fundação, “foi apenas o último de uma série de passos russos ao longo dos últimos anos” com foco no arquipélago. “Ações essas que estão levando alguns analistas de Defesa a concluir que essas ilhas, assim como outras do Báltico e do Atlântico Norte, podem se tornar os primeiros alvos da Rússia se decidir atacar países da Otan”.
No primeiro governo Trump, foi justamente Kirill Dmitriev quem tentou uma aproximação comercial com os EUA, via Rex Tillerson, o então secretário de Estado dos EUA, propondo-lhe uma parceria entre Washington e Moscou no Ártico.
O objetivo declarado: explorar gás e petróleo. Os planos nunca se concretizaram, mas tudo aponta que agora podem ser revividos, em paralelo às negociações sobre o futuro da Ucrânia.
Como destaca Elisabeth Brawl, as acusações de Moscou a Oslo dão aos russos a opção de responder às supostas violações do Tratado de Svalbard – um subterfúgio de resto usado com a Ucrânia, repetidamente acusada de violações que, na visão dos russos, justificam suas ações.
“Como a Rússia pode responder à suposta infração da Noruega?”, questiona a especialista. “É impossível saber. Mas uma coisa é certa: embora Svalbard possa ser extremamente remoto, o que acontece lá não ficará lá.”
Fonte: www.cnnbrasil.com.br