Assange, Snowden e Delgatti são heróis de duas épocas, a antiga e a moderna, por ousar desfraldar a bandeira dos princípios democráticos e enfrentar os poderosos, escreve Marques
Foto: Guilherme Santos
Na antiguidade, no estágio de desenvolvimento das repúblicas ateniense e romana, as pessoas se identificavam com referência a uma família, tribo ou cidade. “A identidade-nós tinha muito mais peso do que hoje na balança nós-eu”, sublinha Norbert Elias, em A Sociedade dos Indivíduos (Zahar). Na atualidade, a associação a uma esfera externa ao “eu” só se vê em novelas de TV, para ressaltar a procedência familiar das personagens, pelo sobrenome. Pobres têm apelidos jocosos, o que indica um self desvalido. O fato é que a “identidade-eu” é a cara de nosso tempo.
Alguns autores consideram o individualismo o paradigma da civilização ocidental; outros, uma configuração ideológica moderna. Onde se esperava chegar a um acordo intelectual, subsiste a incrível variação polissêmica, que vai da ausência de empatia a um corajoso heroísmo. Com efeito, o termo individualismo recobre as noções mais heterogêneas que se possa imaginar.
O individualismo repousa na convicção de que a humanidade é composta, não por conjuntos sociais (nações, raças, classes, grupos), mas por indivíduos que não se deixam aprisionar em um holismo (do grego, holos / totalidade). A autodeterminação está na origem do conceito de liberdade individual. Sinônimo de uma vontade egóica capaz de traçar objetivos que se sobrepõem a qualquer ordem coercitiva, para impor pela força a singularidade de entidades únicas, proprietárias de suas ações e inações – para o mal, o bem ou o isolamento.
Em Crime e Castigo, de Dostoiévski, o jovem personagem do romance simboliza o percurso para o mal ao assassinar uma velha agiota e sua irmã, para roubar-lhes a poupança, julgando-se merecedor da pecúnia para financiar vãs pretensões nutridas de ascensão social. N’O Diário, de Anne Frank, numa situação limítrofe, o percurso para o bem é feito pelo resgate da memória que reconduz a protagonista ao sentimento de existir, rompendo o véu da vida denegada no nazismo.
Em ambos os casos, contextos adversos obstaculizavam aspirações pessoais. Já em O Estrangeiro, de Albert Camus, sem as emoções correspondentes de raiva ou remorso, um homem solitário cuja frase dileta é “Tanto faz” mata alguém, por nada, enquanto “o céu se abria em toda a extensão, deixando chover fogo”, no percurso para o isolamento que o distancia da relação-nós.
A certidão de nascimento da liberdade individual foi registrada por René Descartes, no Discurso Sobre o Método (1637), ao concluir que a única certeza de existência (cogito, ergo sum / penso, logo existo) no mundo é o eu : “Meu pensamento sou eu”. Vale para o estudante Raskólnikov, a menina judia Anne ou o funcionário público Meursault. A liberdade individual afiança o direito de propriedade, a economia de mercado, a crença religiosa, a orientação sexual, a criação artística e a livre opinião. O DNA está na mentalidade e nos valores dos cristãos primitivos.
Na Renascença, deu passos em direção a si própria. Nos séculos 17 e 18, apareceu como vivência e categoria analítica ao instituir o indivíduo na forma de um sujeito separado, com direito ao corpo, convertido na revolucionária matriz democrático-liberal. Início da nova era.
Heróis da luta democrática
Segundo Alain Laurent, em Histoire de L’Individualisme (PUF): “As práticas individualistas se exprimem sob um viés sociológico, político, econômico e, ainda, religioso, ético, e inclusive epistemológico e filosófico. Seguramente, a configuração individualista pode encarnar todos os campos imagináveis da atividade humana. No plano ideológico-político, o primado da liberdade individual se mostra em versões anarquistas, democráticas, aristocráticas, liberais e conservadoras”. Aquela, recorde-se, incentivou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – a carta de princípios fundadora da modernidade. Daí a presença espraiada no espectro de intervenções. O individualismo se alastrou na formação da inovadora cosmovisão.
Como conciliar uma miríade conflitiva de liberdades individuais, se não pela imposição de regramentos universais, sem fazer tábua rasa da sagrada conquista?
A interação social criou a necessidade de harmonização das manifestações de liberdade. Comunidades organicistas eliminam a autonomia para fazer escolhas pessoais. Vide a opressão sobre as mulheres, no Afeganistão, onde o totalitarismo Talibã reprime com severidade qualquer autonomização do gênero feminino, aos moldes ocidentais. Sociedades contratuais tendem a preservar a autonomia dos indivíduos, conquanto a resistência de segmentos reacionários. Os temas aborto, homofobia e ecologia são ilustrativos dos quiprocós.
O vocábulo latim individuum começou a se referir aos seres humanos, com exclusividade, em período recente, embora o fenômeno englobe uma onda de longa duração para a civilização. Não se trata de uma ideologia que se troque, qual um pneu furado do carro. Na ex-URSS, sob o tacão repressivo que proibiu a prática da Psicanálise, acusada de “pequeno-burguesa”, a estatolatria gravitacional e o coletivismo forçado não lograram arrancar da consciência cidadã as raízes individualistas, plantadas há dois mil anos. A caravana passa, os cães ladram. Descontado o mal-estar pelos excessos, o saldo é positivo na escala da história. É pura ingenuidade reduzir a multifacetada cognição do individualismo a um egoísmo antissocial.
O sufixo “ismo” embaça a percepção sobre a grandeza moral de Julian Assange, Edward Snowden e Walter Delgatti em defesa da liberdade de expressão internacional, da democracia contra a vigilância imperialista e contra as ilegalidades da Operação Lava Jato que, ancoradas no lawfare, contribuíram para fraudar as eleições de 2018. Com o termo idiotes, os gregos xingavam os indivíduos apolíticos sem participação ativa nas questões públicas do Estado. Assange / Snowden / Delgatti são heróis de duas épocas, a antiga e a moderna, por ousar desfraldar a bandeira dos princípios democráticos e enfrentar os poderosos. Há que enaltecer a luta pela emancipação nas dinâmicas republicanas de individuação em favor da verdade.
A liberdade é o signo da utopia pós-capitalista: “De cada um conforme as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades”. Nesta definição do humanismo socialista, é importante salientar a soberania do indivíduo, ainda que a libertação coletiva dependa da mobilização de classes e do “novo príncipe” (encarnado numa Frente Popular), para a produção de um indivíduo que ultrapasse as limitações do narcisismo sombrio. Quiçá, num estágio adiante, “prevaleça um equilíbrio mais estável na balança nós-eu”, projeta Elias.
(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul. Publicado no Sul21
Publicado em 14/06/2022 15h08