Desde 2011, pelo menos, grupos conservadores e fundamentalistas vem se articulando nas redes sociais – e fora delas – em campanhas em torno de pautas como a criminalização da homofobia, o casamento gay, a corrupção, direitos humanos e a segurança pública.
Por Marco Weissheimer, do Sul21
João Guilherme dos Santos: começamos a analisar Bolsonaro com mais cuidado em 2014.
Uma rede de grupos de pesquisadores vem acompanhando a ação e o modo de articulação desses grupos há alguns anos. Para esses pesquisadores, o que se viu na campanha eleitoral de 2018 no Brasil seguiu a lógica do que vinha sendo construído. “De certo modo, muita gente subestimou o potencial desses grupos fundamentalistas. Várias das pautas que apareceram na campanha, como o kit gay e a Lei Rouanet, estão circulando há vários anos. A Lei Rouanet foi definida nestes grupos como uma legislação que pega dinheiro de programas sociais e dá para artistas, quando é possível provar factualmente que isso é mentira. Mas não houve nenhum grande esforço de convencimento para mostrar que isso era mentira”, diz João Guilherme Bastos dos Santos, pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
João Guilherme dos Santos é doutorando em Comunicação na UERJ, sob a orientação da professora Alessandra Aldé, que é realizadora, juntamente com Vicente Ferraz, do documentário “Arquitetos do Poder”. Além disso, ele coordena um grupo de pesquisa chamado Tecnologias da Comunicação e Política, vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, que reúne grupos de pesquisa de todo o Brasil. O grupo de pesquisa do qual João Guilherme faz parte estuda campanhas eleitorais e a articulação de grupos conservadores há vários anos. Em entrevista ao Sul21, ele fala como o que ficou escancarado agora na campanha de 2018 já vinha se constituindo há um bom tempo, sem que merecesse a devida atenção.
Sul21: Como funcionou esse acompanhamento que vocês fizeram de grupos de Whatsapp durante a campanha eleitoral deste ano?
João Guilherme dos Santos: Nós pesquisamos campanhas eleitorais e a ação de grupos conservadores há algum tempo já. Vou fazer um rápido histórico. Em 2011, pesquisamos a questão do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, e ali foi possível detectar a formação de grupos que estavam se articulando em torno de petições públicas para impedir a criminalização. Identificamos ali a ação de alguns cantores gospel, de Silas Malafaia e de vários grupos com viés fundamentalista que se articulavam no Twitter na época para exercer pressão sobre o Legislativo. Em 2014, começamos a analisar Bolsonaro com mais cuidado. Havia uma rede de páginas policiais que já tinham um discurso anti-petista, anti-comunista e moralista que serviam de suporte à campanha de Bolsonaro no Rio. Ele usava muito essa dinâmica de polarização, de antagonismo, de definir uma linha clara e dizer que, quem está do outro lado, é bandido e inimigo.
Em 2016, houve uma aproximação dessas duas frentes. Bolsonaro é batizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo, consolidando o casamento dessas duas frentes juntando um conservadorismo religioso com viés mais fundamentalista com a pauta da segurança pública. Com o tempo, junta-se a essa frente também a pauta anti-corrupção que coloca o PT como único responsável pela corrupção no país. Os atores que pesquisávamos já confluíam nesta direção há um bom tempo. O que mudou foi a rede, o whatsapp. Essa foi a grande novidade. Nas nossas pesquisas, nós entrevistamos profissionais de várias áreas que atuam em campanhas eleitorais. Nós víamos uma expectativa grande em relação ao whatsapp. Como isso era muito recorrente começamos a pensar em uma metodologia para estudar o whatsapp, principalmente por causa do caso Youssef, que aconteceu em 2014, quando, às vésperas da eleição, surgiu o boato que ele tinha sido envenenado.
Começamos a investigar como a informação pode viralizar dentro do whatsapp. Não é difícil entender porque eles escolheram o whatsapp. Ele garante o anonimato e tem criptografia ponta a ponta, o que é muito interessante para quem quer trabalhar com notícias falsas. Ao mesmo tempo, essas mesmas características fazem com que seja difícil viralizar a informação nesta rede, que é privada, não tem uma time line pública, nem um algoritmo de impulsionamento de visibilidade.
Nós passamos a investigar então como uma notícia pode viralizar dentro deste cenário. Elaboramos uma primeira hipótese de trabalho que é entender o whatsapp não só como uma rede de pessoas interconectadas. Se você jogar uma fake news em seu grupo de amigos, a quantidade de interessados em política pode ser pequena e a quantidade de dispostos a compartilhar esse conteúdo menor ainda. Mas quando você tem grupos de política a chance de alguém se interessar é bem maior. E esses grupos são interconectados, com algumas pessoas participando em vários deles. Alguém compartilhar uma notícia de um grupo para outro é muito diferente de eu compartilhar essa notícia para os meus contatos e esperar que alguém compartilhe. O funcionamento dos grupos tem uma dinâmica que tem um grande potencial de viralização. Em cada grupo destes, são mais de 250 pessoas, o que propicia uma lógica de viralização que não é tão comum em uma rede privada.
Em maio deste ano, antes do início da campanha eleitoral,começamos a entrar em alguns grupos para tentar entender melhor essa lógica. Muita gente só foi perceber a dimensão do whatsapp durante a campanha, entrou no final e assistiu o sucesso de um coisa que foi construída nos meses anteriores. Ter entrado nos grupos em maio nos ajudou muito a entender como essa estratégia foi se organizando, como eles erravam às vezes e aprendiam com os erros. Os grupos têm um limite de pessoas. Quando um grupo atingia seu limite, muitas vezes eles criavam outro mantendo o mesmo nome e só ir acrescentando uma numeração. Quando alguns candidatos visitavam outros estados esses grupos não conseguiam se mobilizar para receber o seu candidato. Vários grupos aprenderam com isso e passaram a se dividir regionalmente. Em vez de ter grupos 1,2,3, passaram a ter grupo Rio, grupo São Paulo e assim por diante. Houve um processo de aprendizado nestes meses que é muito importante para entender um pouco o que aconteceu durante a eleição.
Em termos de conteúdo, por mais que muita gente tenha ficado surpresa, só se reafirmou o que já vinha circulando há um bom tempo. O tema do kit gay, por exemplo, não é muito diferente das ideias que já circulavam em 2011 no debate sobre a criminalização da homofobia. O que mudou foi o alcance que tiveram notícias falsas pegando esses temas e associando-os a personagens atuais. O kit gay foi ligado com Haddad, a fraude nas urnas foi ligada com o TSE e assim por diante.
Quantos grupos foram avaliados nesta pesquisa?
O nosso grupo de pesquisa está em 90 grupos, mas temos parcerias com outros núcleos de pesquisa que também estão fazendo essa investigação.
O estudo prossegue então?
Sim. É interessante acompanhá-los. É uma nova fase e os grupos mudaram bastante. Muita gente saiu, muita gente entrou. Nós tentamos identificar padrões de comportamento e dinâmica de rede. Entendendo esses padrões nós podemos fazer projeções e não precisamos conhecer a rede inteira, o que é impossível no caso do whatsapp, para entender a dinâmica com que funciona.
Vocês estão mais preocupados então com a lógica de disseminação do que com os conteúdos em si mesmos?
Nós nos preocupamos com os conteúdos na medida em que alguns deles têm maior potencial para viralizar e estamos particularmente interessados nas notícias falsas. Além disso, nós temos parcerias com pesquisadores que têm outros focos de investigação. Tem gente estudando, por exemplo, como os administradores moderam ou não esses grupos, quem é expulso do grupo e por qual razão, se há pessoas concentrando muitos grupos. Nós identificamos que existem figuras políticas nestes grupos, com numero oficial de campanha e tudo. Qual é a função desses políticos nos grupos? Quando alguém mostra que uma notícia é falsa, todo mundo fala que não estava sabendo daquilo. Mas há parlamentares dentro de grupos onde essa notícia circulou. Algumas vezes, são administradores do grupo inclusive. As pautas são diversas e estamos dividindo esse trabalho entre vários grupos.
Outra característica desses grupos parece ser uma segmentação temática muito grande, segundo os critérios mais diversos que podem ser desde uma localização regional até os adeptos da caça do javali no interior de São Paulo. Essa segmentação tem uma contribuição particular para a viralização de determinados conteúdos?
Se formos pensar a viralização de notícias falsas dentro desses grupos, temos pelo menos três etapas. A primeira é a emissão. Algum pólo está emitindo sistematicamente essas notícias. A segunda etapa é a da viralização e a terceira é aquela onde esse conteúdo atinge grupos que não estão interessados em política. Essa última é a etapa onde mais pessoas são atingidas, chegando aos grupos de famílias, de hobbies, de futebol, geralmente por meio de um de seus integrantes que participa de algum grupo especificamente sobre política. Ao se perceber algum nicho importante, passa-se a incidir especificamente sobre ele, seja um grupo de caçadores de javali ou de entusiastas por carros, pesca, tiro, etc. Mas esses grupos estão na ponta do processo. Como os integrantes de grupos que gostam muito de política potencialmente participam também de algum grupo de família, a possibilidade desses conteúdos chegarem aos grupos de família é muito grande.
Na tua avaliação, qual é a dimensão do impacto que essa lógica de disseminação de fake news teve no resultado das eleições, se é que é possível quantificar esse impacto?
É difícil mensurar isso objetivamente, pois estaríamos inferindo coisas sobre a motivação de quem votou, o que exigiria um estudo mais aprofundado. Mas há dois fatores que nos permitem afirmar que as notícias falsas têm um papel relevante. As equipes que entrevistamos no passado, que estavam envolvidas neste processo, apontaram que, quem compra um pacote com esse tipo de conteúdo, geralmente está interessado em aumentar a rejeição do oponente e não propriamente em conquistar votos. É isso que a notícia falsa acaba provocando: ou a pessoa voto nulo ou deixa de votar em um determinado candidato que seria perigoso. Esses dos fatores foram muito importantes nesta eleição. Houve uma rejeição recorde dos candidatos no segundo turno e um índice de abstenção enorme.
Não estamos dizendo que as notícias falsas definiram, sozinhas, o resultado da eleição, mas parece que elas influenciaram um contingente de pessoas grande o bastante para ter impacto eleitoral, seja por pessoas que acabaram anulando o voto, seja por pessoas que votaram contra um determinado candidato. Esse é um padrão internacional. Aconteceu com o referendo do Brexit, no Reino Unido, e com a eleição de Trump, nos Estados Unidos, que foi um caso emblemático. Não é um fenômeno específico do Brasil. Está acontecendo em vários países seguindo um padrão. Em todos eles, temos eleições apertadas onde as notícias falsas parecem ter cumprido um papel importante.
Muito tem se falado sobre a atuação de Steve Bannon, ex-assessor e estrategista de Trump, na elaboração de um pacote tecnológico específico e na implementação dessas práticas em campanhas. O que há de real nisso, na tua avaliação?
Steve Bannon, de fato, parece estar envolvido nestas campanhas. Há vários indícios disso e no Reino Unido estão investigando mais a sério essa questão. Ao mesmo tempo, temos cenários muito diferentes. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, essa ação se deu principalmente pelo Facebook. Aí temos o caso envolvendo a Cambridge Analytica, que permitiu o acesso a uma série de informações privadas específicas o bastante para se definir bem determinados públicos e produzir notícias falsas específicas para cada um desses públicos, com o objetivo de obter impacto eleitoral. Isso só pode acontecer no Facebook. No Whatsapp, você não tem um perfil público com informações suas, nem um algoritmo de visibilidade que vai selecionar o que vai mostrar para cada pessoa.
Por outro lado, se o cenário é diferente, a lógica das notícias falsas segue um padrão recorrente, utilizando alguns gatilhos emocionais, fomentando a solidariedade de um grupo específico baseada na hostilidade contra quem não está naquele grupo. Há várias agências investindo neste método e, assim como veio para o Brasil, provavelmente irá para o Uruguai em breve. Existe um mercado crescendo aí.
E a produção e disseminação de fake news é uma das principais armas desse mercado?
João Guilherme dos Santos: Sim. E não se trata apenas de difundir, mas de conseguir viralizar. Você pega um conjunto de pessoas que não estão contratadas pela campanha, que tem seus grupos particulares e que acabam sendo um canal que, sistematicamente, compartilha aquelas notícias. Deste modo, você consegue, gratuitamente, um potencial gigantesco de difusão de notícias falsas. De algum modo, essa lógica parece ter feito as pessoas não prestarem tanta atenção nas notícias falsas. Muita gente parte do princípio de que se ela não recebeu (dinheiro) para compartilhar aquela notícia, ninguém recebeu também para produzi-la. Esse processo mistura pessoas que estão profissionalmente envolvidas na produção e difusão de notícias falsas, cientes de que elas são falsas e com finalidade eleitoral, com pessoas que não têm muito discernimento sobre política.
Em que medida, esse tipo de prática pode representar uma ameaça à democracia e à possibilidade de um convívio social que não esteja baseado em um permanente antagonismo e em discursos de ódio e intolerância?
Há um ponto importante a observar que é o fato de que a maioria das pessoas que participam desses grupos só observa. Há uma minoria muito ativa que posta muitas mensagens e realmente é muito radical. Não temos como saber até que ponto essa maioria silenciosa concorda efetivamente com as ideias da minoria ativa. De fato, essa minoria é perigosa e não mostra nenhum comprometimento com a democracia, adotando um discurso de ódio muito pesado. Quanto ao tema das ameaças à democracia, uma coisa muito grave que aconteceu foram os ataques contra o Tribunal Superior Eleitoral. Eles aconteceram durante muito tempo e, durante a contagem do segundo turno, havia uma série de mensagens dizendo que, se o resultado não fosse “aquele que deveria ser”, se iria para os quartéis. Circularam muitas fotos de armas nestes grupos, em parte pelo apoio ao porte de armas, mas em parte também por serem pessoas ligadas à segurança pública. Então, insuflou-se nestes grupos um posicionamento contrario às instituições democráticas, o que é algo muito grave. Ou seja, essas ameaças não estão muito no futuro, já estão aí.
Parece que mudou radicalmente o modo de se fazer campanhas. A esquerda em geral e o PT em particular estavam despreparados para essa realidade? Quais são os principais desafios e aprendizados a serem enfrentados.
De certo modo, muita gente subestimou o potencial desses grupos fundamentalistas. Várias das pautas que apareceram na campanha, como o kit gay e a Lei Rouanet, estão circulando há vários anos. A Lei Rouanet foi definida nestes grupos como uma legislação que pega dinheiro de programas sociais e dá para artistas, quando é possível provar factualmente que isso é mentira. Mas não houve nenhum grande esforço de convencimento para mostrar que isso era mentira. Não houve nenhum grande esforço para conversar com esses grupos ou para perceber que eles se apropriaram de um modo muito eficaz das redes sociais. Isso já ocorreu em 2011 na campanha contra a PL 122/2006. Um dos aprendizados é esse: não subestimar o estrago que esses grupos e a desinformação podem causar.
Por outro lado, creio que houve um aprendizado sobre o papel do whatsapp nas campanhas que pode ajudar a equilibrar um pouco futuras disputas. Para além da dimensão eleitoral, há grupos de pesquisa que estão preocupados com esses temas há muito tempo, mas que não foram acionados pelas instituições que subestimaram o estrago que poderia ocorrer. Quando decidiram levar o assunto a sério, já era tarde e as providências tomadas foram incompatíveis com o que estava acontecendo. Não ter acessado o conhecimento acumulado nos últimos por esses grupos de pesquisa foi algo grave.
Fonte: Sul21