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Marília

Hulk na luta de classes, por Ruy Braga

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02/08/2023
Manifestantes na greve dos roteiristas nos EUA
Getty Images

Após a de­cre­tação de uma greve pela Guilda dos Atores de Tela ¬– Fe­de­ração Ame­ri­cana de Ar­tistas de Te­le­visão e Rádio (SAG-AFTRA), a in­dús­tria cul­tural ba­seada em Hollywood está to­tal­mente pa­ra­li­sada. O mo­vi­mento dos atores somou-se à greve de mais de dois meses li­de­rada pela Guilda dos Es­cri­tores da Amé­rica (WGA). Os ca­nais de TV abertos estão re­es­tru­tu­rando sua pro­gra­mação en­quanto as es­treias nos ci­nemas são adi­adas. Fãs em todo o mundo dos se­ri­ados vei­cu­lados pelos ca­nais de stre­a­ming já se con­formam com os atrasos que o mo­vi­mento pa­ra­dista irá fa­tal­mente acar­retar nos lan­ça­mentos.

Os dois sin­di­catos gre­vistas re­pre­sentam juntos cerca de 180 mil atores e ro­tei­ristas. Eles são o co­ração da in­dús­tria cul­tural global. E o mo­vi­mento tem con­quis­tado apoio de fi­guras im­por­tantes da in­dús­tria, como, por exemplo, os atores Ge­orge Clo­oney, Alec Baldwin e Kevin Bacon. O ator que in­ter­preta o Hulk nas te­lonas, Mark Ruf­falo, postou em sua conta no Twitter: “Eles (exe­cu­tivos das em­presas) cri­aram um im­pério de bi­li­o­ná­rios e acre­ditam que não temos mais valor. En­quanto eles ficam nos acam­pa­mentos de verão dos bi­li­o­ná­rios rindo como gatos gordos, nós es­tamos or­ga­ni­zando um novo mundo para os tra­ba­lha­dores”.

As rei­vin­di­ca­ções dos gre­vistas mis­turam de­mandas ti­pi­ca­mente as­so­ci­adas aos re­a­justes sa­la­riais, como o au­mento dos ren­di­mentos pela re­pro­dução de suas atu­a­ções nas pla­ta­formas de stre­a­ming, com exi­gên­cias de re­gu­lação do uso e da ma­ni­pu­lação de suas ima­gens pela In­te­li­gência Ar­ti­fi­cial (IA).

A Guilda dos Atores de Tela – Fe­de­ração Ame­ri­cana de Ar­tistas de Te­le­visão e Rádio (SAG–AFTRA) é membro da AFL–CIO, a maior fe­de­ração de sin­di­catos dos Es­tados Unidos. A pre­si­denta do sin­di­cato, Fran Dres­cher, tem se es­for­çado para ex­plicar que a es­ma­ga­dora mai­oria dos atores é for­mada não por mul­ti­mi­li­o­ná­rios, como quer fazer pa­recer a en­ti­dade pa­tronal, a Ali­ança de Pro­du­tores de Ci­nema e Te­le­visão, mas por tra­ba­lha­dores que lutam todos os meses para pagar suas contas: “A grande mai­oria dos atores é for­mada por tra­ba­lha­dores que tentam ga­nhar a vida, pagar o alu­guel, co­locar co­mida na mesa e levar os fi­lhos para a es­cola. Tudo o que você as­siste, o que você gosta, o que o di­verte, são cenas cheias de pes­soas que não estão ga­nhando muito di­nheiro”.

A es­trela do se­riado The Nanny, ori­gi­nal­mente exi­bido entre 1993 e 1999, ar­gu­menta que a ca­te­goria sofre há uma dé­cada um sério ar­rocho nos pa­ga­mentos dos di­reitos de imagem ad­vindos do stre­a­ming. Além disso, a Ali­ança de Pro­du­tores de Ci­nema e Te­le­visão ela­borou uma pro­posta con­si­de­rada “ofen­siva” pelo sin­di­cato: pagar al­guns cen­tavos por cada vez que a imagem de um ator ma­ni­pu­lada pela IA fosse vei­cu­lada pelo stre­a­ming. Na prá­tica, isso re­pre­sen­taria a ob­so­les­cência do ator fi­gu­rante que, pro­va­vel­mente, ex­pe­ri­men­taria uma drás­tica re­dução de suas par­ti­ci­pa­ções nas pro­du­ções.

Se­gundo Fran Dres­cher: “Todo o mo­delo de ne­gó­cios foi mu­dado pelo stre­a­ming, pelo di­gital, pela IA. Se não agirmos agora, es­ta­remos todos em pe­rigo de sermos subs­ti­tuídos por má­quinas. […]. Estou cho­cada pela forma como pes­soas com as quais temos tra­ba­lhado estão nos tra­tando. Não con­sigo acre­ditar, sin­ce­ra­mente, quão dis­tantes es­tamos em tantas coisas, como eles alegam po­breza e como perdem di­nheiro a torto e a di­reito, en­quanto re­mu­neram seus CEOs em cen­tenas de mi­lhões todos os anos. É sim­ples­mente no­jento!”

De fato, de acordo com o Es­cri­tório de Es­ta­tís­ticas do Tra­balho dos Es­tados Unidos, em 2022 o sa­lário re­ce­bido pelos atores na Ca­li­fórnia era de 28 dó­lares por hora, apro­xi­ma­da­mente o dobro do sa­lário mí­nimo do Es­tado. No en­tanto, os con­tratos dos atores não co­brem o tempo in­te­gral, apro­xi­mando-se mais de formas in­ter­mi­tentes de re­mu­ne­ração, o que faz com que seu ren­di­mento anual se apro­xime da linha da po­breza ofi­cial do Es­tado. Se­gundo o SAG-AFTRA, o sa­lário médio de seus re­pre­sen­tados após os des­contos com im­postos, co­mis­sões e agentes, é de 3 mil dó­lares.

De tão baixo, esse valor ha­bi­lita os atores a par­ti­ci­parem dos pro­gramas pú­blicos de as­sis­tência so­cial, ao mesmo tempo que im­pede sua in­cor­po­ração ao se­guro saúde ofe­re­cido pelo sin­di­cato. Na re­a­li­dade, apenas 12,7% dos mem­bros do SAG-AFTRA estão aptos de­vido ao seu nível de renda a ade­rirem ao plano de saúde ne­go­ciado pela or­ga­ni­zação.

Fran Dres­cher in­siste em de­clarar que o mo­vi­mento tra­ba­lhista nos Es­tados Unidos en­trou em um novo mo­mento de sua his­tória, tendo em vista o fato de que tra­ba­lha­dores e pro­fis­si­o­nais de di­fe­rentes se­tores têm se sin­di­ca­li­zado ou mesmo criado seus pró­prios sin­di­catos em uma ver­da­deira onda de mo­bi­li­zação pela base. Al­guns re­sul­tados re­centes desse novo mo­mento co­me­çaram a ame­açar as grandes cor­po­ra­ções glo­bais.

Maior em­presa de trans­portes dos Es­tados Unidos, a UPS está na imi­nência de en­frentar uma das mai­ores greves de sua his­tória. A Ir­man­dade In­ter­na­ci­onal dos Ca­mi­nho­neiros (Te­ams­ters) já aprovou uma greve que pro­mete mo­bi­lizar os 340 mil tra­ba­lha­dores or­ga­ni­zados pelo sin­di­cato e pa­ra­lisar as en­tregas de en­co­mendas em todo o país, cau­sando pre­juízos, so­bre­tudo, para com­pa­nhias como a Amazon.

Con­si­de­rado o mais ra­dical pre­si­dente da his­tória dos Te­ams­ters, Sean O’Brien fez questão de ma­ni­festar sua so­li­da­ri­e­dade com a greve de ro­tei­ristas e atores.
Le­vando em conta que a ne­go­ci­ação entre a SAG-AFTRA e a WGA com os es­tú­dios tem se ar­ras­tado sem a menor chance de um acordo e que no dia 16 de julho os Te­ams­ters rom­peram ne­go­ci­a­ções com a UPS, é pro­vável que nas pró­ximas se­manas te­nhamos uma im­por­tante con­ver­gência gre­vista na Amé­rica. Se acres­cen­tarmos a re­cente onda de cri­ação de novos sin­di­catos pro­ta­go­ni­zada, entre ou­tros, pelos tra­ba­lha­dores da Amazon, Apple, Chi­potle, Geico, Home Depot, REI, Star­bucks, Target e Trader Joe’s, con­clui­remos que o mo­vi­mento sin­dical es­ta­du­ni­dense, após quatro dé­cadas de re­tro­cesso, pa­rece co­meçar a se re­cu­perar.

Trata-se de uma ótima no­tícia em se tra­tando da re­con­fi­gu­ração das iden­ti­dades co­le­tivas dos tra­ba­lha­dores no país mais po­de­roso do pla­neta. Se a des­truição do sin­di­cato dos con­tro­la­dores de voo (Patco) por Ro­nald Re­agan em 1981 anun­ciou a as­censão do ne­o­li­be­ra­lismo em es­cala global, a atual onda gre­vista pode as­si­nalar seu ocaso. Com o apoio do Hulk, quem du­vi­daria que esse ob­je­tivo possa ser al­can­çado?

Ruy Braga é so­ció­logo do tra­balho e lança em 2023 o livro A an­gústia do pre­ca­riado.
Re­ti­rado de Blog da Boi­tempo.

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