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Livro Merendas e Afetos reúne histórias de funcionários de escolas

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“Aprendi a cozinhar cozinhando e peguei tanto gosto pelo trabalho que a minha cozinha estava sempre limpinha. Eu tinha um carinho e um cuidado muito grande pela cozinha”, conta a merendeira aposentada Maria das Graças Soares Barbosa, que trabalhou no Colégio Estadual Maria Polidoro, em Canoas, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 2013. “Até hoje encontro alunos que me reconhecem e falam ‘tia, como era boa a sua merenda’”.

A história de Maria das Graças é uma das que fazem parte do livro Merendas e Afetos, organizado por Sandra Regina Barbosa Soares Coleman. A publicação traz 26 narrativas biográficas, todas de pessoas negras de diferentes estados brasileiros – Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – e do Distrito Federal.

O livro reúne histórias de vida de 18 mulheres negras, daquelas que, muitas vezes, são chamadas de tias: a tia da merenda, a tia do corredor, a tia do portão, a tia da limpeza. São funcionárias que costumam conhecer os estudantes às vezes melhor que os próprios professores e que são fundamentais para o funcionamento das escolas.

“Apesar de não ter muito estudo, trato todo mundo bem, aprendi com a vida”, diz outra biografada, Fátima Souza de Oliveira, conhecida carinhosamente como Fatinha, responsável pela limpeza do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) 370 – Professor Sylvio Gnecco de Carvalho, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

“Ser tia da limpeza pra mim é gratificante. Com os alunos, aprendo e ensino. Às vezes, me sinto a segunda mãe deles. O carinho e admiração é recíproco. Sou muito grata pelo trabalho que tenho”, diz, no livro, Fátima.

Narrativas de poder


Rio de Janeiro (RJ) 31/01/2025 – Entrevista com a escritora Sandra R. Coleman, que está no Brasil para lançar o livro
Rio de Janeiro (RJ) 31/01/2025 – Entrevista com a escritora Sandra R. Coleman, que está no Brasil para lançar o livro

A escritora Sandra Coleman – Fernando Frazão/Agência Brasil

 

O livro é o terceiro de Sandra Coleman, também autora de Mulheres negras brasileiras – Presença e poder, da Exposição ao livro (2020), Filhos, pais e avôs – Narrativas de presença e poder (2021). Em todas as obras, Sandra reúne narrativas de pessoas negras, sempre escritas por mulheres negras. Na terceira obra, a escritora voltou a atenção para as escolas.

“Eu vejo essas merendeiras, inspetoras, elas são invisibilizadas, elas são invisíveis para a direção escolar. Muitas, a direção escolar ou os professores não sabem o nome delas, que não participam ativamente das decisões da escola. Eu acredito que elas sabem muito mais sobre os alunos do que os professores porque têm um convívio maior com os alunos, porque estão ali vendo o que os alunos estão fazendo no corredor. Quando eles vão para a merenda, a tia da limpeza está ali, ela está vendo tudo”, diz a autora do livro.

Para conduzir as histórias, Sandra Coleman elaborou uma lista de perguntas a serem feitas para os biografados – nesta obra, 24 mulheres e dois homens. Entre as questões estão perguntas sobre a história das famílias, sobre avós e bisavós e também sobre episódios de racismo sofridos.

“O livro traz algumas características da sociedade brasileira”, diz a escritora. “A questão do trabalho infantil, muitas mulheres que começaram a trabalhar, crianças com 5, 6 anos de idade, você vai encontrar a questão do serviço doméstico, você vai encontrar a escravização. Em pleno [ano de] 1950, no interior, ainda existiam pessoas vivendo na escravidão”, ressalta.

O foco de Merendas e Afetos, como destaca o título, é a merenda escolar. A merenda é considerada fundamental nas escolas brasileiras para a permanência dos estudantes na escola. A alimentação é inclusive política pública nacional, implementada pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que repassa recursos financeiros federais para o atendimento de estudantes matriculados em escolas públicas.

“Tem [no livro] caso de merendeira que não seguia a ordem da nutricionista da prefeitura. Ela falava que eles mandam fazer purê de batata e ela fazia purê de inhame, porque inhame é mais nutritivo. E as crianças comiam purê de inhame achando que era purê de batata. Então, assim, elas são fantásticas, sabe?”, destaca a autora da obra.

Histórias de muitas

Tanto Maria das Graças quanto Fátima são porta-vozes de história vividas por muitas mulheres negras. “Sofri racismo em uma das casas em que trabalhei, em que a irmã da patroa disse que não gostava de gente preta. De preto só gosto de feijão”, lembra Fátima no livro. Ela conta também que, na escola, encontrou amparo: “Quando trabalhei em uma escola particular, um aluno me chamou de preta burra. A diretora era negra, bem estruturada, não se conformou, chamou os pais dele e fez ele pedir desculpa na frente dos pais, e ele nunca mais fez isso.”

De acordo com a Constituição Federal, o racismo é crime inafiançável no Brasil. Quem comete o ato racista pode ser condenado mesmo anos após o crime. A Lei 14.532, sancionada em 2023, aumenta a pena para a injúria relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional. Com a norma, quem proferir ofensas que desrespeitem alguém, seu decoro, sua honra, seus bens ou sua vida poderá ser punido com reclusão de 2 a 5 anos. A pena poderá ser dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas. 

Mesmo em um país onde as pessoas negras representam 55,5% da população, Maria das Graças conta que sofreu racismo.

“Uma criança derramou a merenda no chão, e a professora falou: ‘Vamos, negra, limpar é o seu serviço’. Isso na frente das crianças. Engoli quieta e depois de servir a merenda procurei a Neide, a minha diretora, uma pessoa abençoada, que me defendeu”, diz Maria das Graças na publicação.

Graça afirma que, hoje, é ela que se define: “Se me perguntarem quem eu sou, respondo: Negra, mãe, avó, carnavalesca, capoeirista e filha de Oya. Me considero uma verdadeira guerreira.”

Uma sobe e puxa a outra

As experiências de vida dos biografados também ressoam na história da própria autora. Ao reunir experiências de outras pessoas, Sandra Coleman ressignifica a própria narrativa. Ela nasceu em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. De família pobre, desde cedo, trabalhava ajudando a mãe nas tarefas domésticas.

Sandra diz que sempre sonhou fazer um curso superior. Desde cedo, foi desencorajada. “Eu tinha o sonho de entrar na universidade, mas, à minha volta, os meus amigos eram todos não negros. Porque a gente tem essa coisa, hoje em dia, então eles não eram negros. E eles falavam que faculdade era besteira, que estava cheio de engenheiro trabalhando de gari. Para que eu ia fazer faculdade? Mas eles foram”, lembra.

Ela passou por uma série de empregos, e, em uma deles, chegou a ser escondida do dono da empresa porque ele não podia saber que tinha uma funcionária negra contratada ali.

Foi no Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), que sua consciência racial “explodiu.” Lá, pela primeira vez, ela conta que foi chamada de bonita. “Naquele momento, eu fiz assim: ‘Eu? Peraí, ela falando comigo? Como assim? Bonita? Eu? Eu, bonita?’. E eu levantei e fui pro banheiro, olhar no espelho. Eu fiquei assim: ‘peraí, a mulher disse que eu sou bonita? Como? Eu?’. Porque eu nunca, 38 anos de idade, eu nunca tinha ouvido alguém dizer que eu era bonita.”

Sandra realizou o sonho de ir para a universidade e tornou-se bacharel em artes-espanhol e mestra em estudos profissionais, com concentração em educação multicultural. Em 2005, conheceu o marido, o advogado americano Major Coleman, e hoje vive nos Estados Unidos.

O primeiro livro nasceu de uma exposição que fez para mostrar aos norte-americanos que o Brasil tem, sim, mulheres negras acadêmicas, pois os estudantes que chegavam nos Estados Unidos eram todos não negros. Foi a exposição Black Brazilian Women: Presence and Power, na Universidade do Estado de Nova York. Sandra Coleman diz que ainda quer escrever mais sete livros, totalizando dez. 

Em todas as obras, ela busca contar histórias de pessoas negras e trazer junto mulheres negras para escreverem, ou a própria história, ou a história de outras pessoas. “Eu acredito muito no uma sobe e puxa a outra. Eu acredito no ubuntu, eu acredito no, juntas, somos mais fortes”, diz. Ubuntu é uma palavra de origem africana que remete a uma filosofia que se baseia na interdependência entre as pessoas. Pode ser traduzida como “Eu sou porque nós somos”.

O livro Merendas e Afetos: Narrativas de presença e poder pode ser adquirido no site da editora Revista África e Africanidades.

Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br

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