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“Palestinos não querem sair de Gaza”, diz representante do UNICEF

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“Os palestinos não querem sair de Gaza.” A declaração de Tess Ingram, gerente de comunicação do UNICEF, refuta a proposta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de assumir o controle do enclave devastado pela guerra.

“Eles querem ficar em Gaza. As pessoas sentem que têm uma conexão com a sua casa e sua terra. E muitos foram separados dessa terra por meses, porque eles não podiam estar no norte e nem no sul. As pessoas sentem que só agora voltaram para suas casas e que eles querem reconstruir (suas vidas)”, diz Ingram, que está na Faixa de Gaza em uma missão humanitária durante o cessar-fogo previsto no acordo entre Israel e Hamas.

Nesta semana, o líder americano disse que os Estados Unidos assumiriam o controle do enclave e o transformariam na “Riviera do Oriente Médio”. A proposta, que foi amplamente rejeitada pela comunidade internacional – exceto por Israel – prevê realocar o povo palestino para países árabes vizinhos, como a Jordânia e o Egito.

 

Mas, na percepção de Ingram, que ouviu relatos de palestinos nos últimos dias, essa proposta é também rejeitada pelo próprio povo de Gaza. “Eu ouvi de várias famílias e de várias crianças: ‘Essa é a minha casa. E nós queremos ficar. Nós sabemos da destruição e vai levar um tempo para reconstruir tudo, mas estamos comprometidos com essa tarefa’”, relata.

Ingram conta que a maioria da população, apesar da guerra, é amplamente conectada com o mundo exterior por meio de notícias e pelas redes sociais. “As pessoas querem entender o que o mundo está falando sobre elas, mas eles também querem que o mundo os apoie”, diz.

“Eles (os palestinos) se sentem determinados, fortes, mas também estão exaustos. Eles passaram por muitas coisas e querem que isso acabe, querem paz. E eles querem que essa paz esteja aqui na Faixa de Gaza, querem ficar e reconstruir”, conta Ingram.

Donald Trump não detalhou como seria essa operação de tomada do enclave, mas as declarações geraram uma ampla repercussão internacional. Países europeus defenderam a criação de dois estados – Israel e Palestina – e as nações árabes rejeitaram a ideia de receber mais de dois milhões de pessoas que vivem hoje na Faixa de Gaza.

Escalada na operação de ajuda durante o cessar-fogo

Nas duas primeiras semanas do cessar-fogo em Gaza, mais de 10 mil caminhões contendo ajuda humanitária entraram no enclave. Ingram ressalta que a Organização das Nações Unidas (ONU) sempre foi capaz de entregar auxílio em larga escala, mas que as operações eram restritas durante os combates.

“Nós estamos trazendo suprimentos para nutrição, kits de higiene, roupas de inverno para crianças, lonas para pessoas usarem como abrigo, vários itens. Também estamos trazendo serviços de saúde, de vacinação e suporte para crianças na área de saúde mental e serviços sociais”, afirma.

Com a livre circulação pelo enclave, as dificuldades em entregar ajuda estão nas rodovias destruídas, nos destroços bloqueando estradas e na falta de conexão com a internet.

Em 23 de janeiro de 2025, família recebe kits de higiene distribuídos para famílias em Khan Younis, no centro de Gaza. • UNICEF

As necessidades neste momento são muitas, mas a prioridade agora para os palestinos é de reconstruir suas vidas em meio às ruínas.

“Muitas pessoas voltaram para cá no norte de Gaza na esperança que suas casas ainda estivessem de pé, na esperança de ver entes queridos que eles não veem há muito tempo. Em alguns casos pessoas encontraram isso, mas na maioria deles não. Pessoas voltaram para as ruínas e para a morte”, afirma.

Ingram está no norte da Faixa de Gaza, local mais afetado pelos bombardeios israelenses e alvo das primeiras incursões terrestres do Exército, no início da guerra.

“Esse foi um local que o UNICEF e outras agências da ONU tiveram dificuldade de acessar durante a guerra. Nós pudemos vir aqui apenas em operações coordenadas em períodos curtos de tempo. Essa é a primeira vez que pudemos vir até aqui e ficar”, relata.

Segundo o UNICEF, mais de um milhão de pessoas voltaram para o norte do enclave durante a trégua nos combates. Por lá, os palestinos encontraram apenas destruição. Muitos voltaram para o sul, devido à falta de suprimentos na região.

De acordo com Ingram, os principais objetivos do UNICEF e das demais agências da ONU são: melhorar o fluxo de água, especialmente no norte, onde o sistema de água foi dizimado; foco em serviços de saúde e nutrição para crianças; e proteção de serviços de saúde mental.

Sistema de saúde destruído

“Os serviços de saúde e nutrição foram duramente impactados pelos bombardeios. E claro, os bombardeios no norte de Gaza foram os mais pesados em relação a todo o enclave. As pessoas aqui realmente lutaram para sobreviver”, relata Ingram.

O Hospital Kamal Adwan, uma das três únicas instalações médicas no extremo norte da Faixa de Gaza que sobreviveu no início da guerra, foi totalmente destruído nos últimos meses.

Ingram visitou a unidade em abril de 2024. Na época o hospital estava em total funcionamento, focado no tratamento de nutrição de crianças. “Quando eu voltei na semana passada, havia apenas a carcaça do edifício. Duramente destruído, aonde vai levar muito tempo para ser reconstruído. E claro, não está fornecendo os serviços de saúde que as crianças precisam”, conta Ingram.

A representante do UNICEF diz que lugares como o Hospital Kamal Adwan estão espalhados por todo o enclave. É o caso também do hospital Al-Shifa, um dos maiores complexos de Gaza que chegou a ficar inoperante no ano passado devido aos combates.

Ingram relata que com o cessar-fogo, a unidade construiu um anexo que está de forma improvisada atendendo a população de Gaza que precisa de cuidados que não necessitem de terapia intensiva.

O Al-Shifa foi alvo de incursões israelenses durante duas semanas, em abril do ano passado. Na época, Israel disse que o local abrigava bases militares do Hamas.

Diferenças entre norte e sul

Apesar no norte do enclave ter sido o principal reduto do Exército israelense, durante os mais de 15 meses de Gaza, foi o sul da Faixa de Gaza que chocou as agências de ajuda humanitária.

Crianças e suas famílias esperam em Al Nuseirat, na Faixa de Gaza, para iniciar sua jornada de volta à cidade de Gaza e às áreas do norte, após 15 meses de deslocamento. • UNICEF

“Nós estamos falando durante toda essa guerra que não há lugar seguro na Faixa de Gaza. Isso porque os combates realmente se espalharam entre o norte e o sul. Então qualquer lugar que você vai em Gaza, você vê destruição. E eu fiquei chocada ao voltar dessa vez, ao ver o nível de destruição que também há no sul”, relata Ingram.

No início da guerra, a cidade de Rafah, no extremo sul do enclave, recebeu mais de um milhão de palestinos que buscavam por abrigo em meio aos intensos combates no norte. O local, no entanto, sofreu sérios danos nos últimos meses, em meio a uma série de incursões terrestres.

“Independente de onde as famílias estão, o sofrimento continua. Eles estão tentando encontrar as coisas que eles perderam. Estão tentando reconstruir. Mas é muito difícil, devido à extensão da destruição”, conta.

Impacto nas crianças

O cessar-fogo também expôs os estragos causados nas vidas das crianças e na geração que foi tomada pela guerra.

“As crianças em Gaza sofreram muito nos últimos 15 meses. Todos os aspectos de suas vidas foram afetados de alguma forma. Eles não tinham acesso fácil a água, eles não dormem pacificamente durante a noite devido ao medo, eles não puderam ir para as escolas, sofreram – em muitos casos – ferimentos físicos e emocionais dessa guerra”, afirma.

Em 21 de janeiro de 2024, crianças veem destruição em Rafah. • UNICEF

A má nutrição é uma das principais preocupações neste momento, dado que a falta de comida pode gerar a má formação do cérebro, provocando nanismo e outras doenças ao longo da vida. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), durante o conflito, 90% das crianças em Gaza sofriam de pobreza alimentar.

“Estamos falando também sobre traumas mentais significativos de crianças que viveram coisas horríveis. Muitas perderam todos os integrantes da família, tiveram partes do corpo amputadas sem o uso de anestésicos e ficaram sem acesso à comida por muitas semanas”, diz.

O foco do UNICEF agora não é só promover ajuda a curto prazo com acesso à água e a comida, mas também a longo prazo com programas de saúde mental, educação e apoio social.

Um mês antes do acordo de cessar-fogo, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA) alertou o mundo dizendo que uma criança morria a cada hora em Gaza durante a guerra.

Vivendo com incertezas e com a esperança do fim

A primeira fase do acordo de cessar-fogo, iniciada em 19 de janeiro, deve durar seis semanas. Durante esse período, 33 reféns serão libertos e mais de 2 mil prisioneiros palestinos serão soltos. Além disso, o acordo prevê a pausa nos combates e a entrada de ajuda no enclave.

A medida, no entanto, não é permanente. Israel e Hamas já estão negociando a segunda fase do acordo, que deve prever o fim da guerra. Essa proposta ainda não foi aceita pelas partes e o risco da guerra voltar ainda é alto.

“Eles viveram em meio às incertezas por mais de um ano. Eles não sabiam quanto tempo os combates iam continuar. Eles não sabiam como ia afetar suas famílias. Eles não sabiam onde iam dormir na próxima noite. Então as pessoas, eu acredito, aceitaram que a situação é muito incerta”, relata Ingram sobre o sentimento dos palestinos durante esse período.

Ela afirma que a continuidade do cessar-fogo é essencial, não só para acabar com as destruição e as mortes, mas também para manter o senso de esperança entre os palestinos.

“Eu ouvi tantas pessoas falarem: ‘Eu sobrevivi’ e ‘Eu voltei para a minha casa, para a minha terra no norte’. Então eu acredito que as pessoas estão vendo isso como o fim. Por isso é tão perigoso se começar de novo, porque eu acredito que isso teria um grande impacto negativo no senso de esperança e saúde mental”, finaliza.

Fonte: www.cnnbrasil.com.br

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