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Artigo→ Mitos sobre a tributação dos super-ricos, por Clair Maria Hickmann e Carlos Eduardo Mantovani

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27/09/2024

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No de­bate sobre a tri­bu­tação das grandes for­tunas e rendas no Brasil, surgem, fre­quen­te­mente, mitos e pre­textos uti­li­zados pelos que querem manter os pri­vi­lé­gios. Re­velam des­co­nhe­ci­mento dos efeitos po­si­tivos que a co­brança desses im­postos ge­raria para o país. Entre esses mitos estão a fuga de ca­pi­tais dos países tri­bu­ta­dores, a hi­po­té­tica re­dução de em­pregos ou a su­posta alta carga de im­postos no Brasil, ar­gu­mentos re­fu­tados por es­tudos, pes­quisas e aná­lises de­mons­tradas neste ar­tigo.

Mito 1: Se au­mentar os im­postos sobre a renda e ri­queza, o ca­pital fu­girá do país – os ricos vão trans­ferir suas for­tunas para outro lugar

A ameaça de fuga de ca­pital dos mais ricos, fre­quen­te­mente in­vo­cada por al­guns super-ricos e pelos grandes meios de co­mu­ni­cação, não passa de um mito.

Na ver­dade, o com­por­ta­mento do in­ves­tidor de­pende de um con­junto mais amplo de va­riá­veis que in­flu­en­ciam os pa­drões de risco e re­torno na eco­nomia, entre as quais des­tacam-se a es­ta­bi­li­dade econô­mica e po­lí­tica, se­gu­rança ju­rí­dica, ta­manho do mer­cado con­su­midor e a pers­pec­tiva de cres­ci­mento da eco­nomia. Estes fa­tores são mais re­le­vantes e pesam muito mais que os ní­veis de im­postos quando se trata de de­cisão sobre mu­dança de país ou de in­ves­ti­mento.

Afinal, que nível de ta­xação faria um em­pre­sário deixar um mer­cado de mais de du­zentos mi­lhões de con­su­mi­dores? E ir para onde: países da OCDE(1) em geral tem tri­bu­tação maior que a bra­si­leira. Ir para países pe­ri­fé­ricos, de mer­cado con­su­midor bem menor? E como des­locar os grandes pa­trimô­nios fí­sicos, as ins­ta­la­ções, fa­zendas? Como en­viar mais di­nheiro a pa­raísos fis­cais do que já o fazem, por meio de pla­ne­ja­mentos tri­bu­tá­rios in­ter­na­ci­o­nais abu­sivos hoje já uti­li­zados em larga es­cala?

Es­tudo re­cente da Tax Jus­tice Network (2) in­dica que o nú­mero de in­di­ví­duos que deixam o país de­vido ao au­mento dos im­postos foi in­sig­ni­fi­cante em re­formas re­a­li­zadas em di­versos países. De acordo com a TJN, es­tudos es­timam pro­ba­bi­li­dades de mi­gração ex­tre­ma­mente baixas após a im­ple­men­tação de im­postos sobre os super-ricos em di­versos con­textos.

Um dos es­tudos até des­carta ex­pli­ci­ta­mente a pos­si­bi­li­dade de um efeito de mi­gração su­pe­rior a 3,2% dos in­di­ví­duos afe­tados. No caso da Suécia, a emi­gração foi maior após o au­mento de im­postos. No en­tanto, os pes­qui­sa­dores também do­cu­mentam que o nível global destes fluxos mi­gra­tó­rios é muito pe­queno, com taxas anuais de mi­gração lí­quida in­fe­ri­ores a 0,01%.

Di­vul­ga­ções re­centes que su­gerem que os ricos estão fu­gindo da No­ruega de­vido a au­mentos nos im­postos sobre a ri­queza foram exa­ge­rados e en­ga­nosos: dos 236 mil mi­li­o­ná­rios e bi­li­o­ná­rios da No­ruega, apenas 30 in­di­ví­duos se mu­daram, 0,01% da po­pu­lação mi­li­o­nária e bi­li­o­nária do país. A re­ceita per­dida com essas saídas cons­titui uma pe­quena per­cen­tagem da re­ceita global ob­tida com o au­mento de im­postos, cons­tatam os pes­qui­sa­dores.

O es­tudo da TJN, acima men­ci­o­nado, in­dica que, em­bora exista um pe­queno risco de pes­soas ricas se mu­darem após a im­ple­men­tação de um im­posto sobre as grandes for­tunas, esse risco pa­rece ser bas­tante baixo e, por­tanto, não deve ser uma grande pre­o­cu­pação ao se pro­mulgar tal im­posto.

A pes­quisa su­gere que, para mi­ni­mizar o risco de in­di­ví­duos ricos mu­darem para outro país, os im­postos sobre o pa­trimônio lí­quido po­de­riam ser apli­cados aos ci­da­dãos que re­si­diram no país nos úl­timos x anos. Esta abor­dagem re­du­ziria os in­cen­tivos para deixar o país após a im­ple­men­tação de um im­posto sobre a ri­queza e ate­nu­aria as con­sequên­cias ne­ga­tivas para as re­ceitas fis­cais, caso os su­jeitos pas­sivos ainda de­cidam mi­grar.

É um mito, por­tanto, que o ca­pital vai fugir, de­fen­dido por aqueles que querem manter pri­vi­lé­gios.

Mito 2: Os im­postos sobre as grandes rendas e ri­quezas pre­ju­dicam a eco­nomia e os ne­gó­cios e podem causar perdas de em­pregos

Há pes­soas que dizem que a ri­queza que elas acu­mulam faz bem para o res­tante da so­ci­e­dade e, se forem tri­bu­tadas, terão menos re­cursos para in­vestir e, por isso, vão gerar menos em­pregos. Ao con­trário do que conta este mito, a ex­pe­ri­ência tem mos­trado que países que dis­tri­buem me­lhor a ri­queza, ta­xando mais o pa­trimônio, têm me­lhor de­sem­penho econô­mico e maior nível de bem-estar so­cial.

Es­tudos aca­dê­micos in­dicam que, na ver­dade, um im­posto sobre a ri­queza in­cen­tiva o in­ves­ti­mento pro­du­tivo. Para a eco­nomia ser mais di­nâ­mica e pro­mover o cres­ci­mento, é ne­ces­sário re­di­re­ci­onar re­cursos fi­nan­ceiros para a eco­nomia “real” e in­cen­tivar in­ves­ti­mentos que geram bens tan­gí­veis. Caso isso não acon­teça, o ca­pital fica con­ge­lado e não cir­cula, ge­rando renda fi­nan­ceira ou acú­mulo pa­tri­mo­nial, be­ne­fi­ci­ando apenas os super-ricos e au­men­tando a con­cen­tração de ri­queza. Dessa forma, a tri­bu­tação justa da ri­queza pode criar um am­bi­ente econô­mico mais sau­dável, o que be­ne­ficia os tra­ba­lha­dores por pro­mover a cri­ação de em­pregos e au­mentar a pro­cura de bens e ser­viços.

Os úl­timos 50 anos as­sis­tiram a um de­clínio dra­má­tico na ta­xação dos mais ricos e o re­sul­tado foi mais de­si­gual­dade e ne­nhum efeito sig­ni­fi­ca­tivo no cres­ci­mento econô­mico ou em­prego (3), des­mon­tando a ideia econô­mica de que os cortes de im­postos para os ricos “es­correm” (o cha­mado “trickle-down”) para me­lhorar o de­sem­penho econô­mico em geral.

A maior tri­bu­tação sobre a renda e a ri­queza na his­tória econô­mica ocorreu no pe­ríodo entre e pós-guerras do sé­culo 20, e foi jus­ta­mente nesse pe­ríodo que houve o maior flo­res­ci­mento econô­mico na Eu­ropa e nos Es­tados Unidos, cha­mados anos mi­la­grosos ou anos de ouro do ca­pi­ta­lismo.

É o con­trário, por­tanto, do que diz o mito. Os im­postos sobre as grandes rendas e for­tunas me­lhoram a eco­nomia e os ne­gó­cios, além de au­mentar os em­pregos.

Mito 3: A carga tri­bu­tária já é muito alta no Brasil

Outro mito que se ouve com certa frequência, quando se fala em tri­butar as grandes for­tunas e rendas, é que a carga tri­bu­tária já é muito ele­vada no Brasil. Este é mais um pre­texto uti­li­zado por aqueles que querem manter o pri­vi­légio. Para os super-ricos, a carga tri­bu­tária bra­si­leira é muito baixa e bem menor que a carga su­por­tada pelos tra­ba­lha­dores. Há di­versos es­tudos e dados que com­provam isso.

Na tri­bu­tação da renda, o ren­di­mento do tra­balho é sub­me­tido a alí­quotas pro­gres­sivas mai­ores que o ren­di­mento dos super-ricos, o que sig­ni­fica que os sa­lá­rios mais ele­vados su­portam uma carga pro­por­ci­o­nal­mente maior. O mesmo prin­cípio não tem sido apli­cado aos ren­di­mentos do ca­pital, uma vez que a maior parte desta renda não é tri­bu­tada – lu­cros e di­vi­dendos – ou é tri­bu­tada, muitas vezes, a alí­quotas fixas e in­fe­ri­ores às taxas apli­cadas ao ren­di­mento do tra­balho para faixas de ren­di­mentos se­me­lhantes. Por isso, a alí­quota efe­tiva do Im­posto de Renda das Pes­soas Fí­sicas é pro­gres­siva apenas até uma de­ter­mi­nada faixa de renda.

Em 2021, por exemplo, a alí­quota efe­tiva apre­sentou uma ele­vação pro­gres­siva so­mente para aqueles com ren­di­mentos até 21 sa­lá­rios-mí­nimos por mês (R$ 23.238,67), che­gando a 12,78%. A partir desta faixa a alí­quota efe­tiva co­meça a cair, al­can­çando a alí­quota efe­tiva de 5,76% para quem está no topo da renda.

Como a renda dos super-ricos de­corre prin­ci­pal­mente do ca­pital, este sis­tema fa­vo­rece os in­di­ví­duos mais ricos acima dos con­tri­buintes mé­dios, que au­ferem o seu ren­di­mento do em­prego. Além disso, os ga­nhos de ca­pital são tri­bu­tados so­mente quando re­a­li­zados, isto é, quando dis­po­ni­bi­li­zados ou re­ce­bidos (exemplo: no mo­mento da dis­tri­buição dos lu­cros aos só­cios e/ou no res­gate dos tí­tulos de ca­pi­ta­li­zação), e os super-ricos muitas vezes não pre­cisam re­a­lizar esses ga­nhos, o que lhes per­mite adiar a tri­bu­tação por muitos anos, au­men­tando ainda mais as suas for­tunas sem serem tri­bu­tados sobre este cres­ci­mento. E ainda, os super-ricos têm inú­meras opor­tu­ni­dades de ex­plorar vá­rias la­cunas e isen­ções, in­cluindo a ocul­tação de ri­queza em pa­raísos fis­cais ou se va­lendo de di­fe­ri­mentos (adi­a­mento) de tri­butos em fundos de in­ves­ti­mentos em par­ti­ci­pa­ções, como a lei per­mite no Brasil.

Con­se­quen­te­mente, as pes­soas muito ricas pagam fre­quen­te­mente uma pro­porção menor de im­posto de renda, em com­pa­ração com as fa­mí­lias de baixos ren­di­mentos. Por exemplo, as in­for­ma­ções da DIRPF de 2022 re­al­çaram, mais uma vez, o au­mento das par­celas de renda isenta e de tri­bu­tação ex­clu­siva de acordo com os es­tratos de renda mais altos: os 0,1% do topo têm 69,3% de seus ren­di­mentos isentos, e 25,4% são tri­bu­tados ex­clu­si­va­mente na fonte, en­quanto a renda tri­bu­tável res­pondeu por apenas 6% da renda total, de acordo com o re­la­tório da RFB (4).

Por­tanto, o mito de que a carga tri­bu­tária já é muito alta pode valer para os po­bres, mas não para os super-ricos.

Notas:

1) Or­ga­ni­zação para a Co­o­pe­ração e De­sen­vol­vi­mento Econô­mico, que reúne 38 países entre as mai­ores eco­no­mias do mundo.

2) TJN – https://​tax​just​ice.​net/​reports/​taxing-​extreme-​wealth-​what-​cou​ntri​es-​around-​the-​world-​could-​gain-​from-​pro​gres​sive-​wealth-​taxes/ Pa­gina vi­si­tada em 25 de agosto de 2024.

3) Hope, David; Lim­berg, Ju­lian. Ox­ford­Socio-Eco­nomic Re­view, Vol.20:eco­nomic con­se­quences of major tax cuts for the rich | Socio-Eco­nomic Re­view | Ox­ford Aca­demic (oup.​com)Pá­gina vi­si­tada em 04 de se­tembro de 2024.

4) https://​www.​gov.​br/​fazenda/​pt-​br/​central-​de-​con​teud​o/​pub​lica​coes/​con​junt​ura-​eco​nomi​ca/​estudos-​eco​nomi​cos/​2023/​rel​ator​io-​irpf.​pdf/​view . Pá­gina vi­si­tada em 05 de se­tembro de 2024.

Clair Maria Hick­mann é au­di­tora fiscal e pre­si­dente do Ins­ti­tuto Jus­tiça Fiscal.
Carlos Edu­ardo Man­to­vani é di­retor do Ins­ti­tuto Jus­tiça Fiscal.

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