Por Carlos Orsi
Minha previsão para 2025 é de que os astrólogos brasileiros tentarão se organizar para serem a aceitos na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e terão chances razoáveis de sucesso. A evidência que apresento é o seguinte trecho da edição mais recente do guia astrológico Almanaque do Pensamento:
“Sol e Saturno, juntos, reforçam a necessidade de investimentos na educação, nas universidades e no setor de pesquisas (…) Esse alinhamento indica um tempo de maior consciência (…) sobre o melhor aproveitamento de talentos universitários, com ênfase em investimentos na produção de ciência e inovação”.
Forte indício de que os vates das estrelas finalmente notaram que a única condição sine qua non para se conquistar respeitabilidade acadêmica no Brasil é dizer, em tom solene, que a universidade é importante e precisa de mais dinheiro, todo o resto (incluindo detalhes como bases racionais e validade científica) sendo perfeitamente negociável. Os exemplos da homeopatia e da psicanálise estão aí, e não me deixam mentir.
Enfim, chegou a hora de meu último artigo do ano, aquele que tradicionalmente dedico às previsões para o Ano-Novo.
Técnica em ação
O leitor frequente deste espaço já está familiarizado com a fórmula ideal da obra profética clássica, composta pelos seguintes ingredientes: quantidade (preveja muito, quem sabe dá para acertar alguma coisa por sorte?), bom-senso (preveja coisas perfeitamente razoáveis e esperadas, como uma crise econômica, o divórcio de uma celebridade), generalidade (diga coisas que podem ser interpretadas de várias maneiras e aplicadas a diferentes situações), imprecisão (evite fornecer detalhes claros de tempo, local, use verbos-fuinha como “pode” e “tende” etc.) e risco (em alguns poucos casos, escolhidos a dedo, viole as regras da generalidade e da imprecisão: se por acaso você acertar, o impacto será enorme).
Uma previsão genérica e imprecisa, quando bem construída, é uma espécie de parasita que se alimenta da tendência humana de preencher lacunas e imputar sentidos de forma quase automática a sentenças ou imagens que, a rigor, não querem dizer nada. O mesmo mecanismo que nos faz ver, digamos, a silhueta de uma santa católica numa mancha de umidade na parede pode nos levar a concluir que a seguinte previsão (publicada pelo site Personare ano passado) fazia referência ao time do Botafogo:
“O entusiasmo pelo esporte pode encontrar outras formas de se manifestar. Como Júpiter está conjunto a Urano, é importante também destacar que o lado repentino de times que podem disparar”.
Uma leitura atenta, no entanto, mostra que nem sequer o esporte a que a previsão se refere – “time” pode ser uma referência a basquete, vôlei, futebol de salão e uma infinidade de outros esportes coletivos – é, de fato, mencionado. E logo no parágrafo seguinte, a profecia arremata: “Tudo estará mais sujeito a imprevisibilidade, tanto para surpreendendo para melhor como para, literalmente, tirar de jogo de uma hora para outra”.
Lidos em conjunto, os dois parágrafos se reduzem a: algo surpreendente talvez aconteça em algum esporte. No fim, o que temos é um exemplo do uso de generalidade e imprecisão para escorar uma obviedade. Não é algo fácil de se fazer: requer talento e treino.
Ano passado, comentei que o ingrediente final da profecia clássica – a pitada de previsões arriscadas – andava ficando escasso. De tudo que o Personare havia previsto para este ano, a única cláusula clara o suficiente para que se possa dizer que havia risco de desmentido foi a seguinte, em referência à cena cultural brasileira:
“Algum importante fenômeno pode surgir na área do entretenimento, ligado a Gêmeos, como um novo comediante ou comédia de muito sucesso”.
E mesmo assim dá para salvar a previsão, talvez, se ampliarmos o sentido de “entretenimento” para incluir os debates nas eleições municipais. Pablo Marçal é Áries, Datena, Touro, mas Boulos é de Gêmeos.
Astrologia comparativa
Um pequeno estudo conduzido no meio do ano reafirmou um resultado experimental obtido diversas vezes no passado: astrólogos raramente concordam em suas interpretações de mapas astrais. Apresentados aos mesmos dados sobre data, horário de nascimento, posições planetárias, etc., diferentes astrólogos produzirão leituras curiosamente divergentes.
Segundo o livro Tests of Astrology: A Critical Survey of Hundreds of Studies, a taxa de concordância para características como extroversão ou emotividade, em mais de 30 testes computados, é pouco maior do que 50%. Com base nisso, resolvi escolher um signo aleatório e comparar as previsões num domínio específico – trabalho – em diferentes fontes (método de escolha aleatória: lance de dois dados de seis faces; correspondência número-signo feita seguindo a sequência tradicional 1=Áries, 2=Touro, 3=Gêmeos, etc.).
O signo sorteado foi 6=Virgem. As fontes, o jornal O Globo, o site Personare (cujo conteúdo é reaproveitado por diversas outras fontes da internet, incluindo no site da Folha de S. Paulo) e o Almanaque do Pensamento 2025. Em princípio, pretenda incluir também publicações internacionais como a edição americana de Cosmopolitan e a francesa de Marie Claire, mas em Cosmopolitan a única previsão para Virgem, com algum componente de objetividade, tratava de vida amorosa (“problemas com os seus ‘exes’, plural”). Já a de Marie Claire é uma perfeita obra de arte, prevendo o tudo e o nada ao mesmo tempo (“ajude-se porque o céu não vai ajudar”, mas “a vida pode parecer um presente dos céus” e “enfrente desafios com determinação e resiliência”). Das três fontes restantes, a única a oferecer uma previsão categórica é O Globo:
“Os astros revelam que os virginianos que buscam oportunidades de empregos no exterior podem comemorar, pois 2025 é o ano que isso irá se realizar”.
Curiosamente, embora se comprometa bem menos com afirmações checáveis, Pensamento parece apontar numa direção diferente:
“No campo profissional, 2025 será de oportunidades de crescimento por meio de uma abordagem meticulosa e estruturada do que já está em construção (…) Evite mudanças bruscas ou impulsivas nesse campo; siga com estabilidade, superando desafios”.
Já Personare é tão sucinto quanto genérico:
“Explorar novas habilidades tende a trazer oportunidades e potencializar mudanças de carreira”.
O que tirar disso tudo? Há uma infinidade de modos de ver essas previsões como compatíveis ou incompatíveis entre si; como de costume, o verdadeiro trabalho acontece na mente do leitor, que inconscientemente vai preenchendo lacunas e amarrando significados de acordo com seus preconceitos, predileções, inclinações etc.
O discurso profético tem uma instabilidade intrínseca – raramente separa o sentido próprio do figurado – que costuma soar como profundidade, mas é apenas esperteza. O que fica claro é que as fontes não estão dizendo a mesma coisa. As previsões talvez sejam compatíveis, mas certamente não são convergentes.
A única surpresa é a previsão arriscada publicada por O Globo. Prometer emprego no exterior para 1/12 da população parece um risco e tanto. Mas será? Num universo de oito milhões de pessoas (número estimado de virginianos na população economicamente ativa do Brasil), algumas haverão de receber ofertas de trabalho fora do país. Dessas, as que tiverem lido a previsão e se lembrarem dela talvez fiquem bastante impressionadas. Quanto às demais… bem, vida que segue, não é mesmo?
Aniversário
Seria injusto encerrar a série de colunas de 2024 sem relembrar o aniversário de 200 anos de uma medida legal que mudou radicalmente o curso da astrologia tal como praticada no Ocidente: a entrada em vigor na Inglaterra, em 1824, da Lei contra Vadiagem (“Vagrancy Act”).
Essa lei determinava, entre outros casos, a punição de “todas as pessoas que, fingindo ou alegando prever o futuro, ou usando qualquer meio, dispositivo ou técnica oculta, por quiromancia ou de qualquer outra forma, enganem ou perturbem os súditos de Sua Majestade”.
Dezenas de astrólogos britânicos foram presos ou multados ao longo do século 19 por causa da norma. Policiais chegavam a armar operações relativamente sofisticadas para pegá-los em flagrante, no momento em que começavam a falar sobre o futuro com o “cliente” (na verdade, um detetive disfarçado). Em 1898, a lei recebeu uma emenda que incluiu, no rol de comportamentos proibidos, prostituição e relações homossexuais, o que – dado o clima moral da Era Vitoriana – acrescentou uma camada extra de estigma social às pessoas processadas sob o “Vagrancy Act”.
Como uma espécie sofrendo forte pressão seletiva, os astrólogos britânicos adaptaram-se às novas condições, e a astrologia inglesa foi deslocando seu foco da previsão de eventos (“você vai conhecer um moreno atraente”) para a interpretação de personalidade (“você é calma e comedida por fora, mas insegura e ansiosa por dentro”), tendência que se universalizou: as previsões jamais desapareceram, mas graças ao processo iniciado pela polícia inglesa duzentos anos atrás, é a astrologia como “teoria da personalidade” que domina as conversas sobre o assunto neste século 21.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto)